Arritmias na infância: quando suspeitar e como interpretar o ECG pediátrico

Médica escuta o coração de uma criança com estetoscópio durante consulta pediátrica, avaliando possíveis sinais de arritmia na infância.

Índice

As arritmias na infância representam um grupo de distúrbios do ritmo cardíaco que podem variar de manifestações benignas e autolimitadas a condições potencialmente graves, com risco de morte súbita. Embora menos prevalentes do que nos adultos, as arritmias pediátricas merecem atenção especial, pois muitas vezes os sintomas são inespecíficos ou confundidos com condições benignas da infância.

O eletrocardiograma (ECG) continua sendo o principal exame para avaliação inicial, permitindo identificar alterações do ritmo, da condução elétrica e da frequência cardíaca. Saber quando suspeitar de uma arritmia e como interpretar corretamente o ECG pediátrico é fundamental para o diagnóstico precoce e para a conduta adequada.

Neste artigo, você vai entender os principais aspectos clínicos e eletrocardiográficos das arritmias em crianças, com orientações práticas para a interpretação do ECG infantil.

Fisiologia cardíaca na infância

O coração da criança apresenta diferenças estruturais e funcionais importantes em relação ao do adulto. O sistema de condução cardíaca é imaturo nos primeiros meses de vida, o que contribui para frequências cardíacas naturalmente mais elevadas e para uma maior suscetibilidade a algumas arritmias benignas.

A frequência cardíaca normal varia conforme a idade. Recém-nascidos apresentam valores entre 100 e 160 bpm, enquanto crianças maiores e adolescentes apresentam médias entre 70 e 100 bpm. O intervalo PR, o complexo QRS e o intervalo QT também mudam com o crescimento, sendo essencial considerar faixas etárias ao interpretar o ECG.

Essas particularidades reforçam a importância de utilizar tabelas de referência específicas para crianças e de conhecer os padrões fisiológicos esperados em cada faixa etária antes de identificar uma possível arritmia.

Quando suspeitar de arritmias na infância?

Os sinais de arritmia na infância podem variar amplamente, desde manifestações discretas até sintomas agudos. Palpitações, tontura, fadiga, síncope e desconforto torácico são achados frequentes. Em lactentes, a irritabilidade, o suor excessivo durante as mamadas e o ganho ponderal insuficiente também podem indicar alterações do ritmo cardíaco.

Crises súbitas de palidez, taquipneia e cianose podem sugerir episódios de taquiarritmia ou bradiarritmia significativas. Além disso, histórico familiar de morte súbita ou de cardiopatias hereditárias, como síndrome do QT longo, aumenta a necessidade de investigação.

Reconhecer precocemente esses sinais é decisivo, pois o tratamento adequado depende da identificação do tipo de arritmia e de suas causas.

Fatores de risco e condições associadas

Vários fatores podem predispor crianças às arritmias. Entre eles, destacam-se:

  • Cardiopatias congênitas, especialmente após correções cirúrgicas;
  • Miocardites e infecções virais, que alteram a condução elétrica;
  • Distúrbios metabólicos e eletrolíticos, como hipocalemia ou hipomagnesemia;
  • Uso de medicamentos, como broncodilatadores e antidepressivos tricíclicos;
  • Síndromes genéticas, incluindo a síndrome de Wolff-Parkinson-White e a síndrome do QT longo.

A identificação desses fatores é essencial para guiar o raciocínio clínico e direcionar os exames complementares.

Principais tipos de arritmias na infância

Taquicardias supraventriculares

As taquicardias supraventriculares (TSV) são as arritmias sintomáticas mais comuns em crianças. Caracterizam-se por frequência cardíaca elevada e regular, geralmente acima de 180 bpm em lactentes e 150 bpm em crianças maiores.

A forma mais frequente é a taquicardia por reentrada nodal atrioventricular, causada por um circuito elétrico anômalo. Clinicamente, manifesta-se por palpitações súbitas, irritabilidade e, em casos prolongados, sinais de insuficiência cardíaca.

No ECG, a TSV mostra complexos QRS estreitos, ritmo regular e ausência de ondas P visíveis, pois a despolarização atrial ocorre simultaneamente à ventricular.

Bradicardias

As bradicardias podem ter origem sinusal ou resultar de bloqueios atrioventriculares. Em crianças, a bradicardia sinusal é comum durante o sono, em atletas jovens ou em resposta vagal intensa, sendo geralmente fisiológica.

Já os bloqueios atrioventriculares (BAV) de alto grau podem indicar lesões estruturais do sistema de condução ou distúrbios inflamatórios, como no lúpus neonatal. O ECG mostra intervalos PR prolongados (BAV de primeiro grau) ou falhas de condução atrioventriculo-ventricular (BAV de segundo e terceiro graus).

Arritmias ventriculares

As arritmias ventriculares, embora menos comuns, exigem atenção pela gravidade potencial. A taquicardia ventricular (TV) pode ser sustentada ou não sustentada e geralmente está associada a cardiopatias estruturais, miocardites ou síndromes genéticas como a de Brugada.

No ECG, a TV apresenta complexos QRS alargados e morfologia bizarra. A presença de dissociação atrioventricular e a ausência de ondas P precedendo cada QRS confirmam a origem ventricular.

Bloqueios de condução

Os bloqueios de ramo podem ocorrer isoladamente ou após cirurgias cardíacas. O bloqueio de ramo direito incompleto é o mais comum e, muitas vezes, representa uma variante normal. Já o bloqueio de ramo esquerdo requer investigação, pois pode indicar cardiopatia estrutural subjacente.

O reconhecimento desses padrões no ECG evita confusões diagnósticas e direciona a conduta apropriada.

Interpretação do ECG pediátrico

Diferenças entre ECG pediátrico e adulto

Interpretar o ECG de uma criança exige atenção às diferenças fisiológicas em relação ao adulto. A posição do coração no tórax, o tamanho do tórax e a predominância do ventrículo direito nos primeiros anos de vida influenciam o traçado.

Em crianças pequenas, observa-se eixo elétrico desviado para a direita, ondas T negativas em derivações precordiais direitas e complexos QRS de maior amplitude em V1 e V2. Com o crescimento, o eixo tende a se deslocar para a esquerda, e as ondas T tornam-se positivas gradualmente.

Além disso, o intervalo QT deve ser corrigido pela frequência cardíaca (QTc). Valores acima de 460 ms merecem investigação para síndrome do QT longo.

Critérios para identificar arritmias comuns

Ao analisar um ECG pediátrico, o médico deve seguir uma sequência lógica:

  1. Avaliar a frequência e o ritmo: determinar se o ritmo é regular e se há correspondência entre ondas P e complexos QRS.
  2. Analisar o eixo elétrico: o desvio significativo pode sugerir sobrecarga de câmaras.
  3. Observar intervalos PR, QRS e QTc: anormalidades indicam distúrbios de condução ou repolarização.
  4. Verificar a morfologia das ondas: presença de ondas P anômalas ou complexos QRS alargados ajuda a distinguir origem supraventricular ou ventricular.

Exemplos de traçados característicos

  • Fibrilação atrial: é um ritmo irregularmente irregular, sem atividade atrial regular ou organizada. A ativação atrial é rápida (geralmente superior a 320 batimentos por minuto) e apresenta amplitudes variadas. Nenhuma onda P discreta é observada nesse traçado. Em vez disso, são vistas ondas fibrilatórias rápidas, irregulares, variáveis e de baixa amplitude oscilando entre os complexos QRS.
Fonte: UpToDate, 2025.
  • Taquicardia ventricular: QRS largo (>120 ms), FC >150 bpm, dissociação A-V.
Fonte: UpToDate, 2025.
  • Síndrome de Wolff-Parkinson-White: intervalo PR curto e presença de onda delta.
UpToDate, 2025.
  • Bloqueio atrioventricular de segundo grau tipo Mobitz I: aumento progressivo do intervalo PR até que uma onda P não seja conduzida (seta), diminuição progressiva do incremento do intervalo PR, diminuição progressiva do intervalo RR e o intervalo RR que inclui o batimento bloqueado (0,96 s) é menor que o dobro do intervalo RR entre os batimentos conduzidos (0,53 a 0,57 s).
Fonte: UpToDate, 2025.
  • Bloqueio atrioventricular de segundo grau tipo Mobitz II: os intervalos PR e RR são constantes, mas o terceiro batimento atrial (A) não é conduzido (seta). A eletrocardiografia do feixe de His (HBE) mostra intervalos AH (85 ms) e HV (95 ms) constantes e AH normal, porém sem condução HV no batimento não conduzido.
Fonte: UpToDate, 2025.

Reconhecer esses padrões no ECG permite decisões rápidas e seguras na emergência e no acompanhamento ambulatorial.

Abordagem diagnóstica complementar

Monitorização Holter

A monitorização contínua por 24 ou 48 horas permite detectar arritmias transitórias não captadas em ECG convencional. Dessa forma, o Holter é indicado em casos de palpitações intermitentes, síncope inexplicada ou suspeita de arritmia induzida por esforço.

Testes de esforço

O teste ergométrico avalia a resposta cronotrópica e identifica arritmias que se manifestam apenas durante atividade física. Além disso, auxilia na análise de arritmias ventriculares e na estratificação de risco em crianças com cardiopatias.

Ecocardiograma

O ecocardiograma complementa a investigação ao identificar anomalias estruturais associadas às arritmias, como disfunções valvares ou dilatações de câmaras cardíacas. Assim, em síndromes genéticas ou inflamatórias, o exame ajuda a avaliar o impacto funcional do distúrbio do ritmo.

Condutas e manejo inicial

O tratamento das arritmias pediátricas depende do tipo, da gravidade e da repercussão hemodinâmica. Em emergências, prioriza-se a estabilização clínica, oxigenação e monitorização contínua.

Assim, nos casos de taquicardia supraventricular, manobras vagais (como imersão facial em água fria) podem reverter o quadro. Quando ineficazes, administra-se adenosina em bolus intravenoso rápido.

Já nas bradicardias sintomáticas, o uso de atropina ou a estimulação elétrica temporária pode ser necessário. Dessa forma, o encaminhamento ao especialista em cardiologia pediátrica é essencial para investigação aprofundada, definição de terapias farmacológicas e, se indicado, ablação por cateter.

Prognóstico e acompanhamento a longo prazo

A maioria das arritmias benignas da infância, como as extrassístoles isoladas, apresenta bom prognóstico e desaparece espontaneamente. No entanto, crianças com cardiopatias estruturais, distúrbios genéticos ou arritmias ventriculares necessitam de acompanhamento prolongado.

O seguimento regular com ECG, Holter e ecocardiograma permite monitorar a evolução do quadro e ajustar o tratamento conforme o crescimento da criança. Além disso, a educação dos pais sobre sinais de alerta e adesão ao tratamento é parte essencial do cuidado.

Considerações finais

As arritmias na infância exigem abordagem criteriosa e conhecimento aprofundado das particularidades eletrocardiográficas pediátricas. O reconhecimento precoce dos sintomas e a interpretação adequada do ECG podem prevenir complicações graves e orientar intervenções eficazes.

Assim, pediatras, emergencistas e cardiologistas devem trabalhar em conjunto para garantir o diagnóstico preciso, o tratamento seguro e o acompanhamento longitudinal, assegurando qualidade de vida às crianças afetadas.

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Referências bibliográficas

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