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Síndrome de Transfusão Feto Fetal: saiba mais sobre classificação de Quintero

Conheça a classificação de Quintero para a síndrome de transfusão feto fetal, as indicações de abordagens e como acompanhar o pré-natal nessa condição. Bons estudos! 

A gestação gemelar requer muito mais cuidado da equipe médica, sendo a síndrome de transfusão feto fetal uma condição relevante e potencialmente fatal para os fetos quando não bem manejada. Por isso, é fundamental saber identificar essa condição para oferecer o melhor tratamento para paciente.  

O que é a síndrome de transfusão feto-fetal (STFF)?

A STFF é uma síndrome de transfusão entre gêmeos monozigóticos, que podem ser monocoriônicos (compartilhando a mesma placenta) ou monoamnióticos (compartilhando a mesma bolsa amniótica). 

Esta síndrome resulta de uma condição anormal no sistema vascular compartilhado entre os fetos, o que leva a uma transferência desigual de sangue de um feto para o outro. Consequentemente, tem-se uma desigualdade na distribuição de sangue e nutrientes entre os gêmeos, o que pode levar a uma série de complicações graves, dependendo da gravidade da síndrome. 

Em essência, um dos fetos, conhecido como “doador“, fornece mais sangue e nutrientes para o outro feto, chamado de “receptor“. O que pode causar problemas de desenvolvimento, crescimento desigual, insuficiência cardíaca em um feto e sobrecarga cardíaca no outro.

Considerando isso, em casos de gêmeos monocoriônicos (MC), isso pode resultar em hipovolemia relativa em um dos fetos (o doador) e hipervolemia no outro feto (o receptor), devido às anastomoses placentárias.

Achado no pré-natal

O principal achado pré-natal da STFF em gêmeos MC é a discordância nos volumes de líquido amniótico, evidenciada por uma bolsa vertical máxima com menos de 2 cm em um saco amniótico e mais de 8 cm no outro saco amniótico.

Apenas os gêmeos monocoriônicos (MC) apresentam essas complicações devido às diferenças em seus sistemas circulatórios, que frequentemente possuem anastomoses placentárias, criando conexões vasculares entre os gêmeos.

Infelizmente as informações epidemiológicas acerca da condição podem ainda ser muito subestimadas à realidade. A razão para isso é que o diagnóstico da condição e seu registro se baseia em dados de nascidos vivos e em ultrassonografias do segundo trimestre da gestação. Não considerando portanto perdas fetais precoces, que poderiam estar ligadas à STFF. 

Apesar disso, estima-se que a STFF ocorra em 9-15% das gestações gemelares MC e 6% das monoamnióticas. Considerando a fisiopatologia da condição, essas estimativas são coerentes. 

Repercussões clínicas para os fetos com síndrome de transferência feto-fetal

Como comentamos, na STFF temos um feto “doador” e um “receptor”. Mas quais são as manifestações clínicas que a hipovolemia seletiva e a recepção resultam?

Feto receptor:

  • Hipervolemia;
  • Pletórico;
  • Aumento da taxa de filtração glomerular (TFG);
  • Polúria (por isso, o aumento de líquido amniótico);
  • ICC.

Feto doador:

  • Hipovolemia;
  • Anemia;
  • Diminuição da TFG;
  • Oligúria/anúria;
  • Aumento de ativação do sistema Renina-Angiotensina-Aldosterona. 

Em vista disso, vemos que o feto “receptor” não é o “parasita” do feto doador. Assim como ele, o receptor também se encontra sob estresse metabólico. 

Por essa razão, na ausência de diagnóstico oportuno e medidas terapêuticas, a taxa de óbito de ambos os fetos pode alcançar 90%. 

Classificação de Quintero: história e critérios

A classificação de Quintero foi desenvolvida pelo Dr. Julian De Lia e Dr. Rubén Quintero na década de 1990, como uma resposta a um já necessário sistema de estratificação que ajudasse os médicos a tomar decisões sobre o tratamento da STFF.

Antes da classificação de Quintero, o que tínhamos disponível era a classificação de Birmingham, muito menos detalhada e não considerava tão profundamente a gravidade da condição. 

Portanto, a Classificação de Quintero é considerada uma ferramenta importante usada para avaliar a gravidade da STFF e orientar o tratamento. Ela divide a síndrome em vários estágios com base em critérios específicos, o que ajuda os médicos a determinar a melhor abordagem terapêutica para cada caso. 

Critérios

Para determinar a STFF são levados em conta alguns critérios, sendo eles: 

  1. Quantidade do líquido amniótico: avaliado em ambos os sacos gestacionais, comparando entre os dois fetos. Uma discordância significativa entre eles leva à um indicador de STFF;
  2. Idade gestacional, sendo importante para uma avaliação justa;
  3. Peso fetal, avaliando se há um desequilíbrio no crescimento entre o doador e o receptor;
  4. Doppler das artérias umbilicais, observando o fluxo nas artérias dos fetos. 

Estágios de gravidade da síndrome de transferência feto-fetal

Com base nos pontos acima, a gravidade da síndrome de transferência feto-fetal pode ser estimada. Portanto, temos 4 estágios, sendo: 

Estágio 1

Discrepância moderada no volume de líquido amniótico, geralmente com uma bolsa vertical máxima maior ou igual a 8 cm no receptor e menor que 2 cm no doador, sendo a bexiga do receptor visível;

  • Doador:
    • Doppler umbilical normal;
  • Receptor:
    • Maior bolsão > 8cm (até 20sem) ou > 10cm (após 20sem);
    • Bexiga distendida;
    • Doppler do ducto venoso normal. 

Estágio 2

Desequilíbrio mais significativo no volume de líquido amniótico, com uma bolsa vertical máxima maior ou igual a 8 cm no receptor e ausência de bolsa no doador (já considerado grave, “stuck twin”;

  • Doador:
  • Bexiga vazia;
  • Anidrâmnio;
  • Doppler umbilical normal.
  • Receptor:
  • Maior bolsão > 8cm (até 20sem) ou > 10cm (após 20sem);
  • Bexiga permanentemente distendida;
  • Doppler ducto venoso normal. 

Estágio 3

Agravamento da hipovolemia no doador, com sinais de insuficiência cardíaca fetal, como hidropsia fetal (acúmulo de líquido no corpo do feto). O volume de líquido amniótico no receptor ainda é significativo;

  • Doador:
    • Anidrâmnio;
    • Bexiga vazia;
    • Doppler umbilical, ↑ IP, DZ ou DR.
    • Receptor:
      • Maior bolsão > 8cm (até 20sem) ou > 10cm (após 20sem);
      • Bexiga permanentemente distendida;
      • Doppler ducto venoso: ↑IP, onda a=0 ou reversa.

Estágio 4

Risco iminente de óbito de ambos os gêmeos devido à insuficiência cardíaca congestiva fetal em ambos os lados.

Vemos que nem sempre o gêmeo receptor é o sobrevivente, mas também estando em risco de vida ao avançar da condição.

Por meio da Classificação de Quintero, a doença pode ser melhor rastreada e um cuidado mais oportuno pode ser ofertado. Abaixo, vemos uma planilha com mais alguns detalhes: 

Estágios de Quintero para classificação da síndrome de transfusão feto-fetal. Fonte: Quintero RA, Morales WJ, Allen MH, et al. Estadiamento da síndrome da transfusão feto-fetal. J Perinatol 1999; 19:550.

Um conceito importante se ter em mente é que o Doppler alterado no feto doador é o da artéria umbilical (AU), enquanto que no receptor (com ICC) o alterado é o doppler do ducto venoso (DV)

Como é vista a padronização da classificação de Quintero atual?

A classificação de Quintero seja a melhor padronização disponível atualmente. Porém, Papanna et al, 2023, traz críticas pertinentes à classificação: 

Embora o estadiamento Quintero represente um método de padronização, existem várias limitações importantes. Podem ocorrer apresentações atípicas. Por exemplo, o gêmeo doador pode ter bexiga persistente e fluxo Doppler umbilical anormal. 

Além disso, embora os estágios mais elevados estejam geralmente associados a uma piora do prognóstico perinatal, a apresentação clínica de um caso específico nem sempre segue uma progressão ordenada dos estágios.

 Por exemplo, um caso de estágio I pode progredir rapidamente em vários dias para o estágio III e a regressão da doença pode ocorrer em até 15% dos casos de estágio I e 60% dos casos de estágio II.”

[tradução livre]

Opções de tratamento


Temos disponíveis três abordagens disponíveis para a STFF de acordo com a classificação de Quintero e monitoramento fetal:

  1. Expectante: 
  2. Ablação fetoscópica a laser de vasos anostomóticos;
  3. Amniorredução. 

Conduta Expectante

A conduta expectante é a escolha para pacientes com STFF em estágio I e sem sintomas maternos, ou mesmo sintomas que sejam toleráveis, com colo > 25mm. Nesses casos, portanto, evitamos a intervenção e monitoramos o status da condição com exames ultrassonográficos semanais. O objetivo é detectar progressão para doença mais grave. 

A abordagem tem como objetivo evitar intervenções desnecessárias, podendo afetar a realização de intervenções posteriores que sejam de fato necessárias. 

Ablação por fotocoagulação a laser

A ablação por fotocoagulação a laser das anastomoses placentárias através da fetoscopia é considerada a abordagem de escolha para o tratamento definitivo da Síndrome de Transfusão Feto-Fetal (STFF) nos estágios II a IV quando a gestação se encontra entre as semanas 16 e 26.

A partir da 16ª semana de gestação, os estudos de fluxo sanguíneo Doppler são integrados ao protocolo de triagem para gestações multifetais monocoriônicas. Isso inclui:

  • avaliação das velocidades sistólicas de pico da artéria cerebral média (MCA-PSV),
  • estudos de fluxo sanguíneo Doppler da artéria umbilical (UA), veia umbilical (UV) e canal venoso (DV).

Esses exames são fundamentais para monitorar a saúde e o desenvolvimento dos fetos em gestações de gêmeos que compartilham uma única placenta.

Conseguimos acompanhar o resultado de uma ablação nas imagens a seguir. Na primeira, o vaso às 11 horas é a veia do receptor, o vaso que entra às 5 horas é a artéria doadora, a luz “verde” de direcionamento está focada no vaso doador. 

Pré-ablação de anastomose arteriovenosa. Fonte: Cortesia de Kenneth J Moise, Jr, MD e Anthony Johnson, DO.

Na imagem abaixo, vemos o pós-ablação da anastomose arteriovenosa. A área ablacionada entre a veia receptora e a artéria doadora. A fibra laser está às 12 horas.

Pós-ablação de anastomose arteriovenosa. Fonte: Cortesia de Kenneth J Moise, Jr, MD e Anthony Johnson, DO.

Após a realização da laserterapia, ultrassonografias semanais são realizadas durante as primeiras duas semanas. Após esse período, a cada duas semanas após a terapia a laser até 30 semanas de gestação, para avaliar complicações e resposta à terapia. A partir das 30 semanas de gestação, as pontuações do perfil biofísico são obtidas semanalmente.

Quanto ao peso fetal, é ideal que seja estimado a cada 3-4 semanas, com o objetivo de identificar um atraso grave no crescimento. Esse achado é especialmente importante quanto ao gêmeo ex-doador, apesar de costumarem apresentar recuperação do crescimento após a ablação a laser. 

Amniorredução

Em gêmeos com idade gestacional > 26 semanas, no entanto, a amniorredução é a intervenção preferida para o tratamento da STFF em estágio II a IV. 

Após o procedimento, é possível seguir a seguinte rotina: 

  • USG fetal semanalmente; 
  • Crescimento fetal a cada 3-4 semanas;
  • Caso haja atraso seletivo no crescimento fetal, Doppler de fluxo sanguíneo da artéria umbilical no feto com tamanho restrito são obtidos semanalmente;
  • Se for detectada discordância no crescimento fetal e houver probabilidade de parto prematuro, um ciclo de glicocorticóides pré-natais é administrado;
  • A partir de 28 semanas, os estudos de fluxo sanguíneo Doppler para avaliar MCA-PSVs são obtidos semanalmente;
  • A partir das 30 semanas de gestação, as pontuações do perfil biofísico são obtidas semanalmente.

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Referências 

  1. Twin-twin transfusion syndrome: Screening, prevalence, pathophysiology, and diagnosis. Ramesha Papanna, MD, MPH. UpToDate
  2. Twin-twin transfusion syndrome: Management and outcome. Ramesha Papanna, MD. UpToDate
  3. História natural das gestações gemelares monocoriônicas diamnióticas com e sem transfusão feto-fetal. Cleisson Fábio Andrioli Peralta. DOI: 10.1590/S0100-72032009000600002 – volume 31 – Junho, 2009. Revista Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia. 

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