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Delirium no paciente crítico: o que preciso saber?

Aprenda a reconhecer e tratar a encefalopatia aguda, síndrome da UTI mais subdiagnosticada 

Delirium é uma complicação comum em pacientes em terapia intensiva (UTI), caracterizada por flutuações no estado mental, falta de atenção, pensamento desorganizado ou um nível de consciência alterado. Em 2020, diversas sociedades médicas se uniram para padronizar os termos antigos como disfunção cerebral aguda e insuficiência cerebral aguda. 

Atualmente, o modo correto de descrever a condição é “encefalopatia aguda”. O termo se refere a uma alteração do estado mental que ocorre em até quatro semanas, podendo ou não ser caracterizada como delirium.

Epidemiologia

O delirium é um fenômeno extremamente comum, ocorrendo em 20% a 70% dos pacientes hospitalizados. Uma metanálise recente comprovou que a maior incidência de delirium se manifesta em pacientes de UTI em ventilação mecânica, com uma incidência de até 80% dos pacientes.

O delirium é um preditor de maior mortalidade e está associado a diversos desfechos ruins como aumento no tempo de ventilação mecânica, maior permanência hospitalar e na UTI, maior comprometimento cognitivo a longo prazo. O delirium tem, portanto, um grande impacto na saúde pública, social e econômica.

Fisiopatologia

Diferentes mecanismos foram propostos para entender a origem dessa síndrome, porém ainda não existe um consenso ou comprovação do método correto, sendo ainda não bem compreendido. A principal hipótese é que a diminuição da atividade colinérgica pode levar ao delirium. Esta hipótese é apoiada pela observação de que o uso de medicamentos anticolinérgicos está associado ao aumento dos sintomas deste quadro e os pacientes com delirium têm maior atividade anticolinérgica sérica em comparação com aqueles sem a síndrome.

O delirium também pode ser causado por um desequilíbrio entre mediadores inflamatórios e anti-inflamatórios, com aumento dos níveis dos primeiros e uma resposta anti-inflamatória reduzida. Além disso, a hiperatividade do sistema dopaminérgico, bem como um aumento ou diminuição da atividade serotoninérgica, também estão associados ao delirium.

Pacientes que são mais propensos ao delirium, como idosos ou aqueles com doença do sistema nervoso central subjacente, também podem ter uma resposta aumentada do sistema nervoso central (SNC) aos mediadores inflamatórios. Parece que esses pacientes podem ter um número aumentado de células microgliais, que estão prontas para serem ativadas em resposta a um dano inflamatório.

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Fatores de risco

Os principais fatores predisponentes do delirium são:

  • Idade avançada;
  • Demência;
  • Deficit visual ou auditivos prévios;
  • Episódio prévio de delirium;
  • Grande quantidade de comorbidades;
  • Contenção mecânica;
  • Uso de drogas de adicção;
  • Cirurgia ou internação hospitalar prolongada;
  • Presença de infecção;
  • Distúrbios metabólicos;
  • Dispositivos invasivos;
  • Dor.

Esses fatores devem ser sistematicamente investigados se temos uma suspeita de paciente com delirium.

Quadro clínico

Delirium é uma condição que se manifesta com um conjunto de sintomas de início agudo e curso flutuante, que podem ser organizados em grupos cognitivos e comportamentais. 

Entre os sintomas cognitivos do delirium estão:

  • Desorientação;
  • Incapacidade de manter a atenção;
  • Memória recente prejudicada;
  • Habilidade visuo-espacial prejudicada;
  • Nível reduzido de consciência e perseveração. 

Os sintomas comportamentais do delirium incluem:

  • Distúrbio do ciclo sono-vigília;
  • Irritabilidade;
  • Alucinações;
  • Delírios. 

O delírio pode se manifestar de maneira diferente entre os pacientes e, por isso, foi classificado em subtipos motores: 

  • Hiperativo: que inclui agitação e hipervigilância;
  • Hipoativo: que se manifesta com alerta diminuído e movimentos lentos;
  • Misto: que engloba manifestações dos dois subtipos anteriores.

Os sintomas do delírio também variam conforme os fatores precipitantes. Por exemplo, pacientes com bacteremia geralmente apresentam encefalopatia e declínio do estado mental, enquanto pacientes com síndrome de abstinência alcoólica apresentam sintomas de um sistema nervoso simpático central hiperativo, como agitação, insônia, tremor, taquicardia e hipertensão.

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Diagnóstico

O delirium, apesar da sua alta prevalência no paciente crítico, ainda é muito subdiagnosticado. Isso se deve a sobreposição de sua fenomenologia com os principais diagnósticos diferenciais (dor, depressão e demência) e também devido a sua apresentação hipoativa ser bem menos aparente clinicamente do que a inquietação e o comportamento agitado do delirium hiperativo. 

Além disso, o delirium requer triagem ativa com ferramentas de avaliação como CAM-ICU para chegar ao diagnóstico e possui um quadro clínico amplo. Portando o delirium é  frequentemente não triado e não reconhecido prontamente pelos médicos no contexto do paciente crítico.

Então, em um paciente que você suspeita que possui delirium, lembre-se de:

  • Realizar uma avaliação clínica completa, que inclui a anamnese e o exame físico do paciente, para encontrar fatores desencadeantes e diagnósticos diferenciais. 
  • Utilizar escalas validadas como CAM-ICU ou ISDSC. 

O DSM-V é considerado o padrão ouro e deve ser aplicado por um médico psiquiatra. Já na UTI, o método mais indicado para o diagnóstico de delirium é o CAM-ICU.

Confusion Assessment Method in a Intensive Care Unit (CAM-ICU)

É composto por quatro blocos de avaliação:

1. Alteração aguda ou flutuação do estado mental:

  • Houve alguma mudança no estado mental basal? OU
  • Houve alguma flutuação no estado mental nas últimas 24 horas?
    • Se “Não”, não há delirium
    • Se “Sim”, prosseguir para o próximo passo

2. Desatenção:

  • Fale para o paciente: “Aperte a minha mão quando eu disser a letra A” 
  • Soletre a sequência: C A S A B L A N C A.
    • Erros: sem aperto no “A”, aperto em outra letra que não o “A”.
    • Se menos que 3 erros, não há delirium.
    • Se 3 ou mais erros  prosseguir para o próximo passo.

3. Alteração do nível de consciência:

  • Calcule o RASS atual do paciente
    • RASS ≠ 0  há delirium.
    • RASS = 0  prosseguir para o próximo passo.

4. Pensamento organizado:

  • Faça os seguintes perguntas/comandos para o paciente:
    1. Uma pedra flutua na água? 
    2. Há peixes no mar? 
    3. Um quilo é mais pesado que dois quilos? 
    4. Pode-se usar um martelo para bater num prego?
    5. “Levante esses dedos” – mostre o movimento.
    6. “Agora faça o mesmo com a outra mão” – não mostre.
  • Menos que 2 erros: não há delirium.
  • 2 ou mais erros: há delirium.

É importante destacar que, mesmo com a utilização desses instrumentos, a avaliação clínica continua sendo fundamental para identificar os sintomas do delirium e garantir um diagnóstico preciso. Portanto, o médico deve estar atento aos sinais de desorientação, dificuldade de concentração, alterações no ciclo sono-vigília, delírios e alucinações, além de considerar os fatores precipitantes que podem influenciar na manifestação do quadro. Com um diagnóstico preciso, é possível garantir um tratamento adequado e reduzir os riscos de complicações para o paciente.

Tratamento

Ao realizar o diagnóstico de delirium, é necessário investigar a causa base dessa doença. Nesse contexto, não podemos deixar de rastrear infecção, dor, afastar distúrbios metabólicos, avaliar disfunções orgânicas, revisar uso de drogas/medicamentos e solicitar exames de imagem conforme a suspeita, como por exemplo uma tomografia de crânio (geralmente não são necessários). O verdadeiro tratamento do delirium é tratar a causa base da doença. 

O controle dos fatores de risco também é crucial no tratamento do delirium. Existem várias medidas não farmacológicas que podem ser tomadas, como:

  • Cuidado beira-leito mais humano;
  • Conversar e explicar o porquê dele estar intenado;
  • Tentar fazer um estímulo cognitivo nos pacientes mais lúcidos;
  • Providenciar prótese auditiva e óculos para os pacientes que necessitam;
  • Garantir um sono adequado (como por exemplo ao diminuir as luzes da UTI no período noturno);
  • Mobilização no leito com um vigoroso estímulo à deambulação nos pacientes aptos;
  • Envolver familiares no cuidado a partir de uma visita ampliada;
  • Sempre evitar contenção mecânica desnecessária.

Existem medicamentos que podem ser usados para tratar a agitação grave em pacientes com delirium, como haloperidol, quetiapina e risperidona. É preciso ter cuidado com o uso de propofol nos pacientes graves, que pode levar à depressão cardiorrespiratória. 

Para pacientes que precisam de controle de agitação devido ao delirium ou abstinência opioide, o “kit” de risperidona, clonazepam e metadona é bastante útil. Caso a fonte do delirium seja abstinência alcoólica, tratamos com diazepam EV/VO, se possível de maneira sistemática, e o uso de precedex pode ser considerado. É importante destacar que o tratamento com antipsicóticos não previne o delirium, mas apenas trata os sintomas.

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Dra. Larrie Laporte

Médica pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública. Estatística pela Universidade Salvador. Formação em pesquisa clínica pela Harvard T.H. Chan School of Public Health. Possui interesse em medicina intensiva, cuidados paliativos, bioestatística e metodologia científica.

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